Anna Kariênina: uma história de abuso psicológico, machismo e trauma
- amandagontijopsi

- 25 de mai.
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Anna Kariênina (1877), romance de Liev Tolstói, narra a trajetória trágica de uma mulher da alta sociedade russa que, casada com Alexei Alexandrovitch Karenin, envolve-se numa relação extraconjugal com o jovem oficial Conde Vronski. O romance é atravessado por conflitos morais, sociais e existenciais, especialmente em torno das convenções da aristocracia, das regras do matrimônio e das tensões entre desejo e dever. A narrativa culmina com o suicídio de Anna, diante de um colapso subjetivo marcado por isolamento, desesperança e sofrimento psíquico.
Anna Kariênina: solidão, submissão e aprisionamento emocional
Ao contrário das leituras que a julgam como “adúltera”, Anna deve ser compreendida como uma mulher aprisionada em um casamento vazio, emocionalmente negligente e socialmente coercitivo. Karenin, seu marido, representa a frieza institucionalizada do patriarcado, aquele que trata o matrimônio como performance e protocolo, mas nunca como encontro humano. Anna vive nesse cenário como alguém reduzida ao papel de esposa-mãe, numa relação onde o amor, a escuta e a reciprocidade estão ausentes.
Sob essa ótica, a decisão de romper com esse arranjo não se dá por frivolidade, mas por uma tentativa de romper com a incongruência existencial – como nos ensina Carl Rogers (1961), o sofrimento emerge quando há uma dissonância entre a experiência vivida e a autoimagem imposta. Anna é julgada por buscar sentido e autenticidade em um mundo que exige conformidade e silenciamento. Sua condição é a de uma mulher socialmente desautorizada a desejar.
O relacionamento com Vronski: conquista, domínio e nova prisão
A relação de Anna com Vronski é frequentemente romantizada. No entanto, ao olhar crítico, torna-se evidente que se trata de mais uma armadilha patriarcal. Vronski não a ama por quem ela é, mas pelo que ela representa: um desafio, um objeto de desejo proibido, uma mulher comprometida cuja conquista lhe assegura status de virilidade.
O que se apresenta como paixão é, na verdade, uma performance de masculinidade tóxica. O amor que Vronski proclama rapidamente se revela possessivo, condicional, vaidoso. Anna é reduzida a um troféu da vaidade masculina, e, após ser conquistada, vê-se isolada do mundo social, mergulhada em uma relação marcada por controle, negligência emocional e desequilíbrio.
Esse ciclo a conduz à atropia subjetiva, visível em sua insônia, crises de ciúme, depressão e crescente fragmentação do self. Em termos existenciais, Anna já não consegue sustentar o mínimo de autonomia e sentido; ela está cindida entre o desejo de ser amada e a angústia de perceber-se constantemente manipulada e desvalorizada.
A dinâmica de dependência e gaslighting
Um dos traços mais devastadores da relação entre Anna e Vronski é o desenvolvimento de uma dependência emocional alimentada por práticas de gaslighting – termo que, como nos mostra Abramson (2014), designa a manipulação psicológica que mina a capacidade da vítima de confiar em suas percepções e sentimentos. Vronski nega repetidamente a legitimidade dos sentimentos de Anna, ridiculariza seus ciúmes e necessidades, mantendo-se como suposto “racional” diante da “irracionalidade” feminina.
Esse processo gradualmente aniquila a autonomia de Anna, que perde a referência de si mesma. Como alerta Cynthia Stark (2019), o gaslighting misógino atua como uma forma de opressão coletiva que desautoriza as mulheres a falar de sua dor, atribuindo-lhes o rótulo de "instáveis" ou "emocionais". Anna é, assim, patologizada pela sociedade e pelo parceiro, quando, na verdade, seu sofrimento revela o impacto de violências simbólicas e emocionais sistemáticas.
Solidão, medicalização e abandono: a destruição final
Na última fase do romance, Anna recorre a substâncias para dormir, dopando-se, incentivada por Vronski, que busca controlar seu comportamento emocional. A medicalização de seu sofrimento é, novamente, uma tentativa de silenciar sua dor ao invés de acolhê-la. Já não se trata de cuidado, mas de contenção química da subjetividade feminina.
O abandono final por Vronski, que a troca por uma mulher mais jovem e socialmente mais conveniente, sela a trajetória de Anna como vítima da hipocrisia social, da misoginia estrutural e da lógica utilitarista do amor romântico burguês. Sua morte não é apenas um fim individual, mas um grito contra um mundo que a usou, estigmatizou e descartou.

O acidente de trem: trauma, morte e o real
Logo no início do romance, Anna testemunha um horrível acidente de trem, no qual um trabalhador ferroviário é violentamente morto diante de seus olhos. Esse episódio funciona como uma ruptura traumática, confrontando Anna não apenas com a morte, mas com a indiferença moral do mundo social ao seu redor. Ninguém reage de forma significativa à tragédia, revelando o vazio ético e emocional da sociedade a que ela pertence. A morte grotesca do operário, invisibilizada pelas classes altas, espelha o seu próprio apagamento psicológico e antecipa a trajetória de sua queda subjetiva.
Do ponto de vista fenomenológico, esse momento constitui uma experiência-limite existencial (Grenzsituation, Jaspers, 1971), em que morte, absurdo e solidão emergem como forças desestabilizadoras. Anna se mostra simultaneamente horrorizada e obsessivamente fascinada pela cena. A imagem do corpo esmagado, o som do trem e a indiferença dos outros permanecem com ela, tornando-se um motivo recorrente de pavor e atração. Esse retorno obsessivo à memória da morte não é acidental — ele reflete sua incongruência emocional interna, o abismo entre sua persona social e o colapso interno que já se delineia.
Neste ponto inicial, Anna já se encontra em estado depressivo, demonstrando sinais de tristeza, desorientação e insatisfação com seu papel de esposa e mãe. O encontro com Vronski, logo após esse evento traumático, não representa um recomeço, mas sim uma tentativa de fuga de uma vida já insuportável, onde ela é privada de amor, dignidade e sentido existencial. Vronski não surge como um salvador, mas como uma projeção de esperança romântica — uma promessa ilusória de sentido e autenticidade em uma narrativa de amor à qual ela se agarra desesperadamente.
Tragicamente, ela foge de um relacionamento abusivo e emocionalmente negligente apenas para cair em outra forma de aprisionamento, igualmente marcado por dominação, objetificação e apagamento. O vínculo com Vronski torna-se uma repetição do trauma, e não sua superação. Anna transita da invisibilidade social para a dependência emocional, agora não apenas não amada, mas também progressivamente fragmentada psiquicamente.
Seu suicídio, mais tarde no romance, acontece da mesma forma exata que a morte que presenciou anteriormente: ela se lança diante de um trem. Esse paralelo não é acidental; ele carrega um significado simbólico e existencial profundo. O ato final de Anna resgata o momento do trauma, retornando à cena que primeiro rompeu sua percepção do mundo. Nesse gesto, a fascinação mórbida se torna encarnação. Ela torna-se o corpo sacrificado da mesma máquina de morte e indiferença que antes a aterrorizou. O suicídio representa tanto o fim de seu sofrimento psíquico quanto uma poderosa denúncia de uma sociedade que descarta mulheres assim que elas deixam de se conformar.
Anna como figura trágica do feminino oprimido
Anna Kariênina não é simplesmente uma mulher adúltera. Ela é uma mulher que buscou autenticidade em um mundo que exige submissão, e por isso foi destruída. Sua história é uma denúncia viva das relações de gênero desiguais, das formas sutis e brutais de abuso psicológico, da manipulação afetiva, e do desamparo existencial.
A partir de uma leitura humanista e existencial, é possível afirmar que Anna foi privada do direito fundamental de ser-em-si (Sartre, 1943), de viver com liberdade e responsabilidade sobre si mesma. Sua morte é trágica não por sua escolha, mas pelo fracasso coletivo de um mundo que não soube cuidar.




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