“Triste, louca ou má”: repensando a tendência de psicologizar o sofrimento das mulheres e individualizar processos psicossociais relacionados à violência de gênero
- amandagontijopsi

- 9 de jun.
- 6 min de leitura
Atualizado: 12 de jun.
Este texto foi originalmente publicado em 2023, sendo agora adaptado para 2025. Ele também serviu como base temática de uma roda de conversa conduzida por mim em 2023, e alguns dos assuntos discutidos ali serão retomados neste texto. Confira também a entrevista sobre o evento.
Esta newsletter é dedicada à exploração da psicologia humanista-existencial sob uma perspectiva crítica, feminista e socialmente situada. Iniciamos nossa jornada com um tema essencial: como a prática psicológica hegemônica frequentemente reduz o sofrimento complexo das mulheres à patologia individual.
Ela não é o problema: como a psicologia dominante frequentemente reduz o sofrimento complexo das mulheres à patologia individual.
A psicologia, enquanto ciência e prática comprometida com a compreensão dos processos subjetivos, historicamente ocupou um lugar ambíguo frente às lutas por equidade de gênero e direitos das mulheres. De um lado, ampliou possibilidades de escuta e cuidado com o sofrimento feminino. De outro, aliou-se muitas vezes à lógica de patologização da diferença, convertendo experiências coletivas de opressão em transtornos individuais — especialmente no que diz respeito ao sofrimento psíquico das mulheres.
Nesse contexto, torna-se urgente interrogar criticamente as tendências de psicologizar o sofrimento das mulheres e de individualizar os processos psicossociais relacionados à violência de gênero. Essas tendências produzem a despolitização do sofrimento, construindo narrativas clínicas que ignoram determinações estruturais — como o sexismo, a misoginia e a desigualdade de gênero — e culpabilizam as mulheres por sua dor, rotulando-a como fragilidade emocional ou transtorno psíquico (o problema está nela, não no que ela sofreu).
Psicologizar o sofrimento, neste caso, significa reduzi-lo a causas individuais ou intrapsíquicas, descontextualizando-o de seus marcos sociais, históricos e materiais. Quando aplicada a questões como violência de gênero, desigualdade ou trauma coletivo, a psicologização atua como mecanismo de despolitização e, muitas vezes, de culpabilização da vítima — e isso é profundamente significativo.
Psicologizar, portanto, não é apenas aplicar uma lente psicológica, mas substituir explicações políticas e estruturais por narrativas individualizantes e patologizantes. Trata-se de uma forma de violência simbólica, uma preocupação crítica para profissionais da psicologia comprometidos com a justiça, a equidade e a práxis emancipatória.
A tendência de psicologizar o sofrimento das mulheres — especialmente nos contextos clínicos — corre o risco de invisibilizar formas sistêmicas de opressão como o patriarcado, o sexismo e a desigualdade de gênero. Em vez de enfrentar suas causas estruturais, essa tendência responsabiliza (e até culpa) a mulher, interpretando seu sofrimento como falha pessoal ou disfunção, e não como resposta a uma violência estrutural — ou como manifestação de trauma.
Essa crítica está alinhada aos fundamentos do movimento antimanicomial, cuja agenda, desde o início, exige o reconhecimento dos marcadores sociais da diferença — como gênero, classe, raça, sexualidade, território e geração — na construção de qualquer diagnóstico ou intervenção. A loucura, nesse marco, não pode ser compreendida sem reconhecer a violência estrutural que a atravessa.
Ao abordar o sofrimento psíquico das mulheres, a psicologia deve comprometer-se com uma abordagem crítica, interdisciplinar e interseccional, capaz de integrar as determinações sociais, históricas e culturais da saúde mental. Essa perspectiva rompe com a tradição clínica individualizante, que tende a culpabilizar as mulheres por sua dor, ao mesmo tempo que invisibiliza os contextos de violência, exclusão e opressão nos quais essa dor é inscrita (hooks, 2000; Butler, 2004).
Em relação à violência de gênero, a prática psicológica precisa assumir um duplo compromisso: compreender as dinâmicas subjetivas e relacionais envolvidas no trauma, e, simultaneamente, denunciar e intervir nas condições sociopolíticas que sustentam essa violência. Isso significa oferecer acolhimento e suporte terapêutico às vítimas sem recair na vitimização passiva, e sem jamais deslocar a origem da violência para um suposto “perfil psicológico” das mulheres que a sofrem.
Fazer isso seria apenas reproduzir a lógica patriarcal que transfere a culpa do agressor para a vítima.
Nesse sentido, a psicologia precisa adotar uma epistemologia do cuidado coletivo, voltada à transformação das estruturas sociais e à promoção de práticas de resistência e solidariedade. As intervenções clínicas devem estar informadas por uma ética feminista que reconheça o sofrimento, mas que também acolha o poder político da dor.
A dor das mulheres não é apenas dor; ela é também memória, história e luta.
Além disso, a formação profissional em psicologia deve incorporar os estudos de gênero, a crítica interseccional e o compromisso com os direitos humanos de maneira transversal e integrada. A escuta terapêutica não é neutra: ela é situada, e carrega implicações éticas, políticas e epistemológicas.
Por fim, a psicologia precisa assumir uma postura crítica e engajada diante de sua própria história — marcada, em muitos momentos, por práticas de silenciamento e normatização do feminino. Isso exige repensar manuais diagnósticos, protocolos de tratamento e metodologias de escuta para que não reproduzam, em nome do cuidado, as mesmas formas de violência que dizem combater.
TRISTE, LOUCA OU MÁ
Este texto foi inspirado nos poderosos versos da canção brasileira “Triste, Louca ou Má”, originalmente interpretada por Francisco, el Hombre. Mais que uma música, trata-se de um manifesto feminista que confronta normas de gênero, controle emocional e prescrições culturais impostas às mulheres. Sua força poética se torna lente de análise sobre como a sociedade disciplina a experiência feminina — especialmente aquelas que resistem a papéis pré-estabelecidos.
A canção denuncia como qualquer mulher que foge da “receita” da docilidade, da maternidade compulsória, da figura de esposa cuidadora e do casamento heterossexual é rapidamente rotulada: “triste, louca ou má”.
TRISTE
Mulheres que vivem sob condições de violência, opressão e injustiça crônica frequentemente experienciam profundo sofrimento emocional. Esse sofrimento pode se manifestar como tristeza, apatia ou humor deprimido — por vezes evoluindo para quadros clínicos diagnosticados como depressão.
No entanto, o que muitas vezes é enquadrado como um transtorno cerebral ou resultado de uma biologia individual, é, em muitos casos, uma resposta legítima e esperada à violência de gênero, à injustiça sistêmica, ao machismo e à marginalização histórica. Nesses casos, a tristeza não é uma patologia — é uma linguagem — uma forma de denúncia.
Como sugerem autoras feministas como a magistral Carla Akotirene, o sofrimento é muitas vezes testemunho das condições estruturais de violação, não apenas um defeito a ser corrigido ou um “problema neurológico” da vítima isolada de seu contexto.
LOUCA
Quando mulheres reagem à violência — ao nomeá-la, resisti-la, denunciá-la judicialmente ou sair de ambientes abusivos — sua reação raramente é lida como coragem. É muitas vezes enquadrada como irracionalidade. Elas são rotuladas como loucas, histéricas, instáveis.
Reagir à opressão é visto como sinal de descontrole emocional, e não como um ato político de autonomia. Muitas mulheres que rompem o silêncio, expressam raiva ou exigem justiça são não apenas marginalizadas, mas patologizadas.
Isso é especialmente visível no sobrediagnóstico de mulheres com transtornos como o de personalidade borderline ou bipolaridade, frequentemente em contextos de trauma. Críticas feministas alertam há décadas que diagnósticos psiquiátricos são frequentemente utilizados para deslegitimar experiências femininas, silenciar vozes e controlar comportamentos.
A psiquiatria tem sido, historicamente, uma ferramenta de controle patriarcal, usada para disciplinar mulheres que ousam romper com as normas sociais. Os diagnósticos, se não manejados com consciência crítica, podem se tornar armas — não para a cura, mas para o silenciamento. Nesse contexto, ser feminista, defender-se, romper o silêncio ou simplesmente não obedecer aos papéis de gênero pode ser visto como “loucura”. O político é tornado pessoal — e então, medicalizado.
MÁ
Se a tristeza vira depressão, e a raiva vira loucura, a resistência vira desvio moral. Mulheres que recusam a submissão são rotuladas como más — egoístas, frias, manipuladoras, perigosas. Essa moralização é uma estratégia: desloca a conversa do campo estrutural para o campo moral e pessoal, culpabilizando a mulher por seu sofrimento em vez de questionar os sistemas que o produzem.
Mulheres independentes, solteiras, que não querem ter filhos são frequentemente consideradas “más”. A sociedade demonstra que mulheres fortes, autônomas e que cuidam de si mesmas — vivendo para si, seus desejos e projetos — são alvo de deslegitimação e ódio. São más. Se se priorizam, são más; se se afastam dos filhos, são más; se não querem filhos, são más.
Ela não tem marido: está triste. Ela não tem filhos: é má. Ela namora outra mulher: é louca.
Precisamos queimar o mapa: disciplina do corpo e da psique feminina sob o regime de gênero
A canção denuncia como toda mulher que escapa da “receita” de docilidade, maternidade e casamento heterossexual é rotulada como “triste, louca ou má”. Esses rótulos não são neutros: operam como mecanismos de controle, deslegitimando a autonomia emocional, sexual e existencial das mulheres. Recusar-se a se conformar não é lido como um gesto político, ético ou subjetivo — mas como patologia ou defeito.
Essa crítica não é simbólica: ela ecoa realidades concretas e históricas. Mulheres que rompem com os papéis de gênero impostos são frequentemente marginalizadas, medicalizadas, institucionalizadas ou punidas socialmente. A imagem da mulher que “queima o mapa” e “reinventa a vida” aponta, não para o caos, mas para a resistência criativa. Nos termos de bell hooks, trata-se de um ato de afirmação radical de si — a recusa em ser definida por um homem, uma casa ou um corpo.




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