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Nem perito, nem investigador: o psicólogo como acompanhante da existência

  • Foto do escritor: amandagontijopsi
    amandagontijopsi
  • 10 de jun.
  • 4 min de leitura

A Psicologia não é um tribunal de rótulos: escutar como resistência na era da funcionalidade


O papel do psicólogo tem sido distorcido pela urgência diagnóstica — e é a presença, não a rotulação, que deve constituir nossa postura ética fundamental.


Na cultura clínica contemporânea, cada vez mais moldada por protocolos, categorias diagnósticas e cronogramas rígidos, o psicólogo é frequentemente confundido com uma espécie de investigador do campo subjetivo — alguém cuja tarefa seria identificar falhas, nomear disfunções e atribuir diagnósticos.


Mas seria esse, de fato, o propósito da psicoterapia?


Nesse processo de medicalização e tecnificação da escuta, perde-se algo essencial quando a prática psicológica é reduzida a essa função: o ato vivo de escutar a experiência humana em sua inteireza.


Quando o encontro terapêutico é transformado em um campo de investigação pericial, o diálogo cede lugar ao interrogatório, e o cuidado é substituído pela classificação. O sujeito — em toda sua complexidade, historicidade, contexto, território e contradições — é traduzido em termos funcionais, sintomáticos e estatísticos.


Tal tendência está longe de ser neutra — nada o é, na verdade. Ela expressa uma relação específica com o sofrimento humano, orientada à sua adequação a um modelo normativo de funcionamento, produtividade e adaptação.


Como nos lembra Carl Rogers, uma das principais figuras da abordagem humanista, a escuta clínica exige autenticidade, empatia e compreensão genuína. Para Rogers (1961), quando alguém se sente verdadeiramente escutado, seus próprios esquemas de significação começam a se reorganizar, e essa pessoa sente-se mais livre para crescer.


O papel do psicólogo, então, não é o de atribuir etiquetas, mas o de acompanhar — com presença radical — o processo de vir-a-ser do outro. Embora a lógica diagnóstica possa ter utilidade em contextos específicos — como avaliações psiquiátricas, perícias ou mesmo em alguns casos clínicos — ela não pode ocupar o centro de uma psicologia clínica existencial.


Reduzir a escuta a um processo de classificação trai a singularidade do encontro clínico. Viktor Frankl, criador da Logoterapia, enfatiza que a busca de sentido é a motivação fundamental do ser humano; quando rotulamos alguém com base em sua dor, interrompemos essa busca. Ao escutarmos de forma aberta, a dor transforma-se em linguagem — e não apenas em sintoma (Frankl, 2008).


A psicologia precisa permanecer aberta à ambiguidade e à profundidade da existência. A experiência humana é contraditória, complexa e fragmentada — e justamente por isso, a clínica deve ser um espaço de simbolização e reconstrução, não de diagnóstico imediato.

É claro que os diagnósticos têm sua função.


Em muitos casos, são ferramentas úteis e necessárias. Assim como os medicamentos, podem ser essenciais para certas situações. O que está em jogo aqui é o uso indiscriminado e automático dessas ferramentas, a ponto de se tornarem instrumentos de controle, classificação e adequação de sujeitos a uma lógica funcionalista e centrada na performance.


Você já ouviu falar em contenção química ou aprisionamento químico? Trata-se do uso de medicações pesadas para sedar indivíduos, muitas vezes retirando-lhes sua agência e seu senso de si. Tais práticas podem suprimir não apenas sintomas, mas também aspectos vitais da identidade e da capacidade de resistência subjetiva — especialmente quando essas medicações se tornam prescrições diárias e normalizadas.


O potencial dessas substâncias para impedir que sujeitos experienciem e expressem emoções fundamentais como a raiva ou a resistência — que são essenciais tanto para o crescimento pessoal quanto para a justiça social — é preocupante. No fim das contas, o uso indiscriminado de diagnósticos e medicações no espaço clínico atua não apenas como rotulação, mas como uma forma de controle travestida de cuidado.


A crítica aqui não é à ciência em si, mas à forma como ela é feita, aos interesses que a mobilizam, aos sujeitos que a produzem e aos que ela pretende atender. O ponto é repensar um certo modo de fazer clínica que esquece a escuta, o afeto, a subjetividade e a singularidade.


A psicologia não deve ser uma extensão dos mecanismos de controle social, mas sim um espaço ético de resistência à patologização da vida.


Dessa forma, o convite ético-político que se faz aos psicólogos e às instituições de saúde mental é que se reconheçam não como especialistas na dor do outro, nem como investigadores de sintomas, mas como companheiros na travessia. A clínica é lugar de relação e de presença. Um espaço onde escutar não significa decifrar, mas sustentar o outro em sua possibilidade de vir-a-ser.


Os diagnósticos não são, em si, o problema. O problema é o que se faz com eles.

Sejamos claros: os diagnósticos podem ser importantes. Eles são necessários em muitos contextos, como já foi dito. Mas, quando utilizados de forma indiscriminada, tornam-se ferramentas de normalização. Deixam de ser atos de cuidado e passam a ser instrumentos de conformidade com a lógica capitalista de desempenho.


Uma criança que tem dificuldades de atenção talvez não esteja doente — talvez esteja reagindo a um sistema que não permite o silêncio. E silenciá-la significa silenciar o grito que aponta para a raiz do problema, suprimindo a possibilidade de intervenções mais profundas e transformadoras.


Um adulto que se sente paralisado talvez não esteja quebrado — talvez esteja resistindo a uma cultura que exige produtividade constante. E silenciá-lo equivale a contê-lo para que se adapte a formas de existência desumanas em uma sociedade que demanda o impossível de maneira incansável.


As formas como temos lidado com os diagnósticos têm gerado lucros majoritariamente para o capitalismo e para a indústria — e não verdadeiramente para a sociedade ou para a existência humana. Em vez de escutarmos, alocamos sujeitos em uma linha de montagem normalizadora, interditando a diversidade, proibindo o “fracasso”, impedindo que sentimentos sejam sentidos, favorecendo a adaptação a um sistema adoecedor — fracassado pela vida.


Precisamos de uma psicologia que resista à redução da vida ao diagnóstico, e de uma clínica que abra espaço para a contradição, a ambiguidade e a produção de sentido.

Você já sentiu que sua experiência foi reduzida a um rótulo?Você sente que a clínica deveria ser um espaço de transformação — ou de correção?


Por uma psicologia da presença e da escuta — e não da rotulação.


Nota: Diagnósticos e medicamentos podem — e devem — ser utilizados de forma ética e contextualizada. Esta crítica não é contra sua existência, mas contra seu uso reducionista como instrumentos de normalização — instrumentos que, em vez de cuidar do sujeito, servem aos imperativos do capital e da adaptação forçada.

 
 
 

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