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ntre Saber e Espetáculo: Na Internet Todo Mundo É Especialista — Mas Até Onde Vai Sua Autoridade de Fala?

  • Foto do escritor: amandagontijopsi
    amandagontijopsi
  • 2 de jul.
  • 5 min de leitura
Vivemos numa era em que o número de seguidores muitas vezes importa mais do que as credenciais acadêmicas. Mas o que realmente confere autoridade para falar sobre temas sensíveis como saúde mental?


A Crise de Autoridade no Campo do Saber


Iniciamos este ensaio com uma provocação: por que tantos usuários da internet sentem-se autorizados a opinar — e, muitas vezes, a prescrever — sobre saúde mental, sem qualquer formação ou experiência concreta na área?


Embora a proliferação de vozes possa sinalizar uma democratização dos discursos, ela também carrega riscos profundos de desinformação, apagamento dos saberes especializados e precarização da escuta clínica.


A autoridade discursiva, antes centralizada em instituições formais e educacionais, hoje circula numa lógica de visibilidade, performance e carisma — o que Byung-Chul Han (2022) chama de infocracia, onde o excesso de informação elimina os critérios de avaliação. Nesse cenário, o engajamento afetivo e a performance opinativa muitas vezes valem mais do que o discurso racional e fundamentado.


Autoridade Epistêmica e Injustiça Testemunhal


A autoridade epistêmica refere-se à capacidade de um sujeito ser reconhecido como legítimo portador de saber. Embora isso possa parecer excludente para alguns, tal autoridade é construída a partir de anos de estudo, dedicação e prática — e se opõe a fenômenos como a banalização de conceitos e a superficialidade do conhecimento.


Essa autoridade pode ser injustamente negada ou inflada, frequentemente dependendo do número de seguidores. Isso constitui uma forma de injustiça epistêmica, quando há uma distribuição desequilibrada de credibilidade — privilegiando discursos vazios ou mal-informados em detrimento de vozes qualificadas.


Na internet, essa distorção se manifesta na supervalorização da fala carismática, frequentemente sem embasamento teórico ou técnico, e na desvalorização simultânea de especialistas — cuja legitimidade é corroída pela mesma cultura de especialismo trivializado.


A Economia da Atenção e o Capital Simbólico Digital


A lógica algorítmica das redes sociais impõe uma nova forma de consagração simbólica: a visibilidade. Como nos lembra Bourdieu (1989), o capital simbólico é o que confere poder e legitimidade social — mas, nas esferas digitais, esse capital é cada vez mais medido por métricas de engajamento.


A economia da atenção (Han, 2022) transforma conhecimento em mercadoria e autoridade em espetáculo: o que importa não é o que se diz, mas como se diz — e quem está disposto a consumir.


Nesse cenário, a autoridade técnica de psicólogos e profissionais da saúde mental pode ser eclipsada por influenciadores que, mesmo sem formação, performam autenticidade, empatia e assertividade.


Isso contribui para o fenômeno da “psicologia pop”, onde conceitos clínicos são esvaziados de sua profundidade e recontextualizados em conteúdos virais — muitas vezes simplificados, generalizados ou até mesmo incorretos.


Desinformação e Riscos Psicossociais


O impacto da desinformação em saúde mental não é apenas teórico — pode ter consequências sérias para pessoas em sofrimento. Autodiagnósticos, técnicas instantâneas de “cura”, romantização do trauma e uso indevido de termos clínicos — como “narcisismo”, “transtorno de personalidade borderline” ou “gaslighting” — são disseminados de forma superficial, frequentemente reforçando estigmas, autoengano e práticas excludentes.


A erosão da autoridade científica também enfraquece as políticas públicas de saúde e esvazia o campo clínico de sua função crítica e transformadora. Trata-se, portanto, de uma questão ética e política — e não meramente técnica.


Esse fenômeno alimenta a atual epidemia diagnóstica, onde o autodiagnóstico e o questionamento do saber baseado em evidências — construído por meio de revisões científicas e pesquisas de pares — levam à popularização e banalização de temas complexos, resultando na difusão de estigmas e na diluição conceitual.


A Ética do Psicólogo nas Redes: Escuta, Responsabilidade e Limites


Diante desse novo cenário, qual é o papel do psicólogo?


A presença digital dos profissionais de saúde mental deve estar alinhada ao compromisso ético de promover o bem-estar, combater a desinformação e respeitar os limites da prática clínica — mesmo em ambientes expandidos como as redes sociais.


A Resolução CFP nº 11/2018 — assim como as diretrizes da APA — define normas para a atuação profissional nas mídias sociais. No entanto, os desafios éticos vão além da conformidade normativa: exigem responsabilidade sobre o que se comunica, como se comunica e para quem.


Estar presente online não é viralizar com o saber — é curar o discurso. Como profissionais comprometidos com a transformação social, devemos reivindicar o valor da escuta atenta, do comprometimento e do cuidado — em contraste com a fala compulsiva e as certezas instantâneas que dominam o meio digital.


A lógica do “não-saber” é profundamente necessária na era da infocracia — em que, segundo Han, somos movidos por um consumo excessivo e constante de informações e por uma replicação voltada mais à busca de atenção do que à comunicação ética. Na infocracia, o sujeito da informação se posiciona como autoridade do saber, autodeclarando-se referência — mesmo quando não é.


Isso traz implicações psicossociais e subjetivas sérias. Sob essa lógica inflacionada de autoridade, os que vivenciam sofrimento psíquico são expostos a soluções rápidas, explicações rasas e generalizantes e ao uso estereotipado de termos clínicos.


Vemos com frequência transtornos como narcisismo e borderline sendo apropriados para rotular pessoas indesejadas ou figuras rejeitadas publicamente — o que apenas reforça estigmas e preconceitos contra quem realmente sofre com esses quadros.


Outro problema grave é o sensacionalismo com que os temas de saúde mental são tratados — apenas para atrair atenção, sem compromisso ético ou político. A banalização do conhecimento em saúde mental esvazia o rigor conceitual e mina a seriedade do campo, deslocando autoridades legítimas: o psicólogo dedicado e experiente muitas vezes é ignorado em favor de um influenciador carismático que propaga desinformação.


Isso cria uma barreira substancial à comunicação e à alfabetização em saúde mental — uma barreira difícil de desfazer — que acaba por deslegitimar o saber validado e dificultar o trabalho dos profissionais.


Entre Saber e Espetáculo


Não se trata de negar o poder das redes sociais como espaço de visibilidade e democratização de temas importantes — inclusive da saúde mental. Mas de questionar a noção de que toda opinião tem o mesmo valor ou autoridade.


O psicólogo, nesse contexto, deve reafirmar seu papel não como portador exclusivo da verdade, mas como agente ético que defende a escuta crítica, resiste à banalização do sofrimento e resgata a complexidade da experiência humana.


Quem realmente se interessa por esses temas precisa adotar uma postura de humildade epistêmica — reconhecendo seus limites científicos, clínicos e práticos. Entre pesquisar um assunto no Google e dedicar uma vida ao seu estudo, realizar pesquisas revisadas por pares e adquirir experiência clínica, há um enorme abismo epistemológico.


É sempre mais responsável questionar sua própria posição de autoridade e recomendar a busca por profissionais certificados e registrados em saúde mental — antes de assumir o papel de portador do saber.

 
 
 

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