Quando a vida vira doença: O que é a medicalização da vida?
- amandagontijopsi

- 23 de jun.
- 7 min de leitura
Despatologizar a vida: Nem toda dor é patológica. Às vezes, é apenas a vida se desenrolando — e exigindo ser sentida.

Vivemos tempos em que sentir-se triste, cansado, confuso ou angustiado é rapidamente traduzido em termos clínicos. Um mal-estar? Talvez uma disfunção. Um vazio existencial?
Provavelmente um transtorno. A experiência humana, em toda a sua complexidade, tem sido filtrada por uma lente médica que oferece prescrições em vez de escuta atenta.
É nesse contexto que emerge a medicalização da vida: um processo sociopolítico que transforma experiências ordinárias em doenças a serem tratadas, rotuladas e contidas.
Esse processo, que transforma aspectos ordinários da existência em objetos de intervenção médica, é o que chamamos de medicalização da vida. Trata-se de um movimento que atravessa o campo histórico, social e político, extrapolando os muros dos consultórios e hospitais: ele permeia a cultura, reformula a forma como compreendemos o sofrimento e redefine o que é considerado “normal”.
A medicalização não surge do nada. Ela se consolida no século XX, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, com o avanço da psiquiatria, a consolidação do modelo biomédico e a ascensão da indústria farmacêutica.
Nesse processo, questões psicossociais e culturais são capturadas por uma lógica individualizante que retira a dor de seu contexto histórico e social, para enquadrá-la em manuais diagnósticos. Desigualdade, racismo, misoginia, LGBTQIA+fobia, luto coletivo, precarização da vida — tudo isso desaparece como causa do sofrimento, sendo substituído por uma explicação interna, biológica e cerebral.
Esse movimento desapropria quem sofre de sua própria experiência, percepção e sentimentos. Reduzir o sofrimento a uma disfunção individual é retirar não apenas o sentido do vivido, mas também a autonomia e a possibilidade de libertação da dor.
Ao transformar a dor em um problema técnico, o sujeito humano — ou o Dasein — é excluído do processo de significação da própria existência, e aquilo que poderia ser força transformadora torna-se um obstáculo a ser eliminado.
A medicina moderna passou a exercer um papel de expropriação da saúde, substituindo a capacidade de elaborar o sofrimento por uma dependência da autoridade técnica. Com a expansão do olhar biomédico, a linha entre o que é sofrimento humano e o que é transtorno mental tornou-se turva.
Tédio, frustração, solidão ou luto — experiências profundamente humanas — passaram a ser vistas como anomalias que precisam ser corrigidas — e medicadas.
O que é a medicalização da vida?
A medicalização da vida é o processo pelo qual aspectos da existência humana — como emoções, comportamentos, experiências sociais, dilemas morais ou dificuldades cotidianas — passam a ser definidos, interpretados e tratados como problemas médicos.
Trata-se de uma tendência cultural e política em que o viver, com suas dores e contradições, deixa de ser reconhecido como parte da experiência humana e passa a ser visto como sintoma de algo errado no indivíduo.
Em outras palavras, é dizer que viver é estar doente. A vida — com seus tropeços e desencontros — vira patologia. Hoje em dia, tudo é transtorno.
Não se trata apenas do uso de medicamentos, mas de uma mudança mais profunda: uma forma de capturar o sofrimento dentro de uma lógica diagnóstica, transformando o que é coletivo, relacional e histórico em desvio individual.
O que antes era reconhecido como conflito existencial, injustiça social, opressão estrutural ou diferença subjetiva passa a ser tratado como “transtorno” por meio de intervenções técnicas — sobretudo psiquiátricas e psicofarmacológicas.
Atualmente, se uma criança é rebelde, pode receber o diagnóstico de transtorno opositor desafiante. Se é mais ativa do que o esperado pelos adultos, pode ser rotulada como hiperativa. Se é criativa e imaginativa, talvez tenha TDAH. Se é introvertida, quieta ou simplesmente diferente, pode ser diagnosticada com autismo.
Esses são os diagnósticos mais frequentes na última década, especialmente entre crianças — e muitas vezes feitos por profissionais não especializados.
O discurso psiquiátrico e a lente biomédica se infiltraram no saber comum de tal forma que, mais do que atingir crianças, passaram a ser incorporados pela sociedade na vida cotidiana — fenômeno que culmina no autodiagnóstico.
Hoje — mais do que nunca — assistimos a uma epidemia de pessoas adultas e jovens que se autodiagnosticam. Esse autodiagnóstico, muitas vezes baseado em desinformação — sobretudo em conteúdos do Instagram, Facebook e outras mídias não científicas — tem contribuído fortemente para a medicalização da vida.
E mais do que nunca estamos diante de uma banalização do sofrimento psíquico e da doença mental, junto a uma má interpretação do que são transtornos reais e a um afastamento do contato com a vida mesma — já que experiências ordinárias da existência tornam-se inaceitáveis, sendo rejeitadas como sintomas de algo maior. E isso, por sua vez, também os absolve da responsabilidade por emoções e ações.
O DSM e a elasticidade diagnóstica
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) tem sido um dos principais vetores dessa expansão diagnóstica. A cada nova edição, novos rótulos são criados e os critérios flexibilizados para incluir mais pessoas dentro da lógica do transtorno. Isso gera uma inflação diagnóstica que banaliza tanto o sofrimento quanto a diferença.
Essa inflação não apenas individualiza problemas sociais como também obscurece a dimensão política do sofrimento humano, transformando-o em uma questão privada — e química. A banalização do sofrimento transforma a dor em ruído de fundo, esvaziando seu significado político e existencial.
Mais uma vez é preciso insistir: a medicalização do sofrimento emocional frequentemente retira a responsabilidade das condições estruturais e transfere o peso para o indivíduo. Esse processo despotencializa o sujeito ao negar-lhe a agência sobre sua própria experiência.
E isso nos permite refletir sobre as consequências desse cenário em uma escala mais ampla.
Kierkegaard: a angústia como potência ontológica
Contra essa lógica, Kierkegaard — filósofo que orienta a prática da psicologia fenomenológico-existencial — oferece uma leitura poderosa da angústia não como patologia, mas como expressão de liberdade. Essa perspectiva pode ser útil para compreender como o sofrimento e a diferença fazem parte do ser humano e da experiência de viver.
Em O Conceito de Angústia, ele afirma que a angústia é o que nos abre à possibilidade, ao salto existencial, ao confronto com nossa própria liberdade de ser. Em vez de ser medicada, a angústia exige reflexão e coragem.
Ao patologizar a angústia, perdemos sua potência como motor de transformação. Tornamo-nos reféns de uma vida anestesiada, imunes ao chamado de mudança que o sofrimento, às vezes, nos convoca a escutar — perdemos a autonomia e a liberdade.
Sofrimento existencial ≠ transtorno mental
Nem todo sofrimento é sintoma. Há dores que não indicam doença, mas pertencem à própria condição de ser e estar no mundo. A tristeza diante de uma perda, a angústia frente ao vazio, o cansaço existencial diante de um cotidiano injusto — tudo isso são expressões legítimas da existência, e não necessariamente quadros clínicos.
Ao patologizar experiências humanas comuns, corremos o risco de silenciar o sujeito em sua singularidade, sua história e seu contexto. A psicologia e a psiquiatria, quando despolitizadas, transformam dor social em culpa individual, promovendo adaptação em vez de transformação.
O risco da medicalização da diferença
Além de silenciar a dor, a medicalização também normaliza modos de ser, tratando a diferença como desvio. Mulheres inconformadas são chamadas de histéricas. Jovens inquietos, de hiperativos.
Pessoas racializadas e dissidentes de gênero são mais frequentemente diagnosticadas e medicadas em nome da adaptação. — Em minha prática clínica, tenho observado indivíduos racializados sendo diagnosticados com paranoia.
Pessoas trans, até pouco tempo atrás (menos de dez anos), eram diagnosticadas com esquizofrenia, assim como outras dissidências de gênero. Essas práticas continuam tendo raízes nas práticas clínicas atuais.
Esse processo produz efeitos profundos: deslegitima a crítica, individualiza o mal-estar e domestica a resistência. O poder médico não apenas cura: ele também normatiza, disciplina e controla.
Despossessão subjetiva: quando a escuta é substituída pelo diagnóstico
A dor, quando escutada, pode ser linguagem. Pode apontar caminhos, revelar fraturas, convocar transformações. Mas quando a dor é convertida em código clínico — quando é traduzida antes mesmo de ser ouvida — ela perde sua potência de sentido. Nesse movimento, não apenas o sofrimento é patologizado — o próprio sujeito é despossuído de sua experiência.
Desapropriar alguém de sua dor é negar-lhe o direito de interpretá-la. A medicina moderna define o normal a partir de critérios estatísticos e funcionais, apagando a normatividade própria do sujeito — isto é, sua capacidade de dar sentido ao mundo a partir do que vive.
Esse processo também é um mecanismo de poder. A medicalização funciona como uma tecnologia disciplinar: ela normatiza comportamentos, produz identidades e regula corpos sob o pretexto do cuidado. Ao mesmo tempo em que oferece alívio, define o que é aceitável sentir, viver e expressar. Quem escapa dessa norma corre o risco de ser rotulado, tratado, contido — a diferença vira doença, transtorno, problema a ser corrigido.
A subjetividade é reduzida à biologia, e a complexidade da existência é empacotada em síndromes. Frantz Fanon — uma das poucas referências negras na psicologia acadêmica, e isso não é coincidência, mas reflexo do racismo estrutural — já denunciava isso ao falar da psiquiatria colonial, que tratava as revoltas dos povos colonizados como sintomas de loucura, quando, na verdade, eram respostas políticas à violência estrutural. O que era resistência virou disfunção. O que era sentimento virou sintoma.
Um ponto importante para refletir é: a quem serve a medicalização da vida? De onde ela vem? Como psicóloga comprometida com a ética, sinto-me obrigada a repetir que as origens da psiquiatria e da psicologia são brancas, eurocêntricas, do Norte global — e, por isso, não dão conta das dimensões sociais, culturais e existenciais da realidade humana.
Frantz Fanon busca trazer uma abordagem da psicologia que acolhe a subjetividade e o contexto, dissecando os fatores coloniais que atravessam a prática clínica. Acredito que ele é uma das primeiras críticas contundentes ao fenômeno da medicalização.
No processo de medicalização da vida, o sujeito é deslocado da posição de agente da própria experiência — colonizado. Sua dor é explicada por um saber externo. Sua história é colonizada. Sua voz é silenciada.
Diferenciar sofrimento existencial de transtorno mental é um gesto ético e político.
É urgente recuperar o valor da experiência humana em sua inteireza, sem reduzi-la a diagnósticos ou produtos farmacológicos. Ao devolver ao sofrimento seu lugar na existência, abrimos espaço para formas mais autênticas — e menos controladas — de viver.
O movimento que se contrapõe à medicalização da vida é a despatologização da vida — e espero que possamos falar mais sobre ele, pois é um tema urgente.




Comentários