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Saúde Mental Fast-Food: Quando O Sofrimento Se Torna uma Ferramenta Do CAPITAL

  • Foto do escritor: amandagontijopsi
    amandagontijopsi
  • 29 de mai.
  • 6 min de leitura

Kierkegaard, Heidegger e a lógica capitalista do diagnóstico


Na contemporaneidade, moldada pela aceleração da vida e por uma ética produtivista, o sofrimento psíquico deixou de ser reconhecido como uma experiência humana legítima e passou a ser tratado como um “problema a ser resolvido”. O mal-estar existencial é transformado com crescente rapidez e precisão técnica em categorias diagnósticas — como se o sofrimento fosse um erro de sistema a ser consertado com urgência, produtividade e prescrição.


Esse é um fenômeno que ultrapassa a clínica: revela uma lógica ontológica da tecnicidade, como descrito por Martin Heidegger (1954), e uma recusa do abismo como parte constitutiva da existência, como advertia Søren Kierkegaard (1844). Em A questão da técnica, Heidegger nos alerta para o perigo do “enquadramento” (Gestell), no qual tudo o que existe é reduzido a recurso — útil, funcional, pronto para uso. A tecnicidade, nesse sentido, não é apenas uma ferramenta, mas um modo de revelação que molda como vemos o mundo, os outros e a nós mesmos.


A saúde mental, capturada por essa lógica, passa a ser medida em termos de eficiência, produtividade e normatividade. O sujeito, por sua vez, é convocado a adaptar-se rapidamente, a “funcionar bem”, como uma engrenagem ajustável e eficiente na maquinaria do capital. A saúde mental, sob esse olhar técnico, deixa de ser sobre sentido e subjetividade para se tornar sinônimo de desempenho, eficácia e adequação normativa.


Como resultado, assistimos à substituição da escuta por triagem, do cuidado clínico pela codificação e rotulação. Em vez de perguntar “o que esse sofrimento significa?”, a questão dominante passa a ser: “qual rótulo se encaixa melhor?”. As categorias diagnósticas substituem a investigação existencial. A clínica passa a espelhar a lógica do mercado.


Simultaneamente, deixamos de lidar com o sofrimento como possibilidade; seu desdobramento já não é mais reconhecido como profundamente humano, mas sim como algo a ser erradicado. Por exemplo, Kierkegaard argumenta em O conceito de angústia que a angústia não é apenas um sintoma, mas uma possibilidade — um sinal de que o sujeito está diante da abertura de seu próprio ser. Trata-se de um sentimento que emerge da condição existencial da liberdade radical — das infinitas possibilidades da existência.


De fato, a experiência da angústia pode ser tão intensa que leva ao sofrimento psíquico profundo. Ainda assim, a angústia é, em última instância, uma abertura ao possível — um fenômeno genuinamente humano. Ela surge quando o eu se torna consciente de suas possibilidades — e essa consciência é aterradora. Viver de forma autêntica é viver em tensão, não em conformidade.


No entanto, para instituições como a Associação Psiquiátrica Americana e os manuais diagnósticos modernos, a angústia é muitas vezes enquadrada principalmente como sintoma de um transtorno mental. A saúde mental moderna — sob pressão das indústrias farmacêuticas, dos modelos biomédicos psiquiátricos e das normas institucionais — transforma essa experiência ontológica em patologia. Ao invés de serem acompanhadas em sua crise, as pessoas são frequentemente classificadas e medicadas, retornando ao circuito da produtividade o mais rápido possível.


É isso que podemos chamar de saúde mental fast-food: um sistema de atenção psicológica moldado por diagnósticos em massa, listas de verificação, catálogos de sintomas e tratamentos baseados em protocolos. Ignora-se a cultura, a história, a intersubjetividade e a singularidade da experiência vivida. Busca-se conformidade, não compreensão.


Nesse sistema, os indivíduos não são verdadeiramente escutados — são gerenciados. As intervenções não são existenciais — são técnicas, sintomáticas e, em última análise, capitalistas. O diagnóstico, aqui, não é um ato de cuidado, mas de adaptação. O sujeito deve se ajustar — ou ser corrigido.


Patologizar automaticamente a angústia é silenciar o chamado existencial e sufocar o processo de individuação. Em muitas abordagens psicológicas — especialmente as existenciais e fenomenológicas —, a angústia, quando acolhida e elaborada, é vista como um fator positivo: contribui para a formação de uma existência autêntica.


Como destaca Dafne Suit: “Crise é definida como o momento em que a pessoa confronta um obstáculo que não consegue superar. A crise é muitas vezes tanto causa quanto consequência da angústia — e também o estopim para a intervenção clínica.” Assim, é um ponto de abertura — para transformação e mudança.


Neste sentido, a angústia pode servir como matéria-prima para o trabalho terapêutico. No setting terapêutico, ela se torna um caminho para expressar autenticidade — para ser e existir na vulnerabilidade, que é, naturalmente, ansiogênica. Ela nos ajuda a reconhecer as diversas possibilidades da vida, a assumir responsabilidade por nossas escolhas e, finalmente, a nos apropriarmos de nós mesmos e de nossa história.

Como escreve Janzen (2012): “A angústia surge diante da liberdade crua e nua das escolhas e possibilidades.” Na filosofia, a angústia é tratada como experiência metafísica — para os pensadores existencialistas, é por meio da angústia que os humanos tomam consciência do ser.


Søren Kierkegaard define a angústia como uma condição existencial que emerge da consciência de que a morte é inevitável. Para ele, a angústia não é meramente uma ameaça; ela faz parte da condição humana. É a tensão entre o eu e o mundo. Quando a existência humana está fundamentada na liberdade — sem certezas prévias —, a angústia se torna a própria dinâmica do existir (Protásio, 2014).


Quando a pressa encontra a dor, o resultado costuma ser um diagnóstico — e não um encontro.


A medicalização acelerada do sofrimento manifesta-se como uma psicologia fast-food: diagnósticos apressados e padronizados, baseados em checklists e critérios universalizantes que ignoram a complexidade, historicidade, cultura, contexto e singularidade da experiência vivida. Trata-se de uma prática que responde mais aos imperativos do mercado da saúde mental do que a compromissos ético-políticos com o outro.


A saúde mental fast-food opera em uma lógica taylorista. Segue rigidamente os manuais diagnósticos sem reflexão crítica ou intersubjetiva, e contribui para a patologização em massa de formas diversas de sofrimento que, na verdade, resistem ou desafiam as noções dominantes de “normalidade”.


Nesse quadro, a psicologia e a psiquiatria modernas deixam de escutar os sentidos, potencialidades e contextos do paciente. E, novamente, na abordagem fast-food da saúde mental, não há escuta — apenas rotulagem. Não há compreensão — apenas intervenção técnica, biomédica e paliativa.


Isso resulta no apagamento do sujeito, de sua alteridade e da inscrição histórico-social de seus fenômenos. Como argumentam Martin Heidegger e Byung-Chul Han, vivemos na era da tecnicidade, da produtividade e do utilitarismo — sob as exigências psicológicas e sociais do capital.


Como explica Byung-Chul Han (2017), vivemos em uma era de controle psicopolítico, onde a produtividade é internalizada e a resistência, patologizada. A saúde mental torna-se um projeto de otimização. Quem sofre não é acompanhado, mas normalizado. Quem desvia não é escutado, mas rotulado.


Estamos vivenciando um momento histórico de diagnósticos em massa que sistematicamente desconsideram fatores contextuais como a tecnologia, a ascensão da infocracia e a percepção alterada do tempo-espaço. Estamos sintomatizando a demanda impossível por ajuste.


Kierkegaard, Heidegger e Han nos convidam a fazer diferente. Eles nos convocam a desacelerar, pensar criticamente e escutar. A reconhecer que o sofrimento nem sempre é sintoma — muitas vezes, é linguagem. Às vezes, o sujeito não está doente — está expressando, por meio do corpo e da dor, o adoecimento de uma era inteira. Um mundo que já não permite lentidão, ambiguidade ou encontro autêntico.

Porém, esse fenômeno sociocultural, situado no presente histórico, é descartado. Em seu lugar, aplicam-se listas de sintomas àqueles que não se conformam ao “novo normal”. Rotulam-se os que resistem às demandas de produtividade da era técnica, buscando transformar sua resistência em patologia.


Mas será esse, de fato, o papel da saúde mental? Não seria mais ético — e mais libertador — escutar e acolher quem está diante de nós? Não apenas em seu sofrimento, mas também em seu potencial, sua história, suas possibilidades e sua liberdade?


Kierkegaard, Heidegger e Byung-Chul Han nos oferecem um convite diferente: parar, escutar, desacelerar, pensar criticamente e resistir. Precisamos reconhecer que o sofrimento não é necessariamente um sintoma — muitas vezes, é linguagem. Pode não ser o sujeito que está doente, mas uma era que está em crise — e ele é o grito por tornar-se quem realmente é. É um chamado por uma existência que almeja liberdade — não prisão na lógica do desempenho a serviço do capital.


Assim, longe de ser um espaço de correção, a clínica deve ser um espaço de cuidado. Um lugar onde a angústia não é silenciada, mas escutada. Onde a dor não é apagada, mas acolhida como caminho em direção ao sentido. E onde o sujeito, em toda sua vulnerabilidade, possa finalmente ser visto — não como desvio da normalidade, mas como pergunta a ser acolhida.


Vivemos em uma era onde a diferença é tratada como falha e a subjetividade como mau funcionamento. E se, em vez de tentar silenciar com rótulos, aprendêssemos a escutá-la com presença e reverência?

Nota:Os diagnósticos ainda têm sua função e, em muitos casos, são necessários — assim como a medicação pode ser essencial e salvar vidas. O que se questiona aqui não é a legitimidade das ferramentas clínicas, mas a forma como o cuidado em saúde mental tem sido cada vez mais reduzido a uma lógica reducionista e capitalista. A crítica recai sobre a medicalização da vida, onde todo desvio da produtividade ou normatividade é apressadamente patologizado, e o cuidado substituído por protocolo.

 
 
 

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